sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Resistir é Preciso

Por: Lucas Navarro
                                                             
George Orwell diz que a imagem do futuro
é a bota sobre um rosto, eternamente,
e a nítida impressão que a gente sente
é que vivemos já num tempo escuro.
O Burgess, por sua vez, também foi duro
quando pegou seu jovem delinqüente
e o converteu num ser subserviente
que só lambia sola, robô puro.
O Glauco aqui, que vive do passado,
saudoso duma infância de opressão
(só fui pelos moleques abusado),
É o mesmo Glauco agora, e lambe o chão
pisado pelo mesmo tipo sado;
só que antes enxergava, e agora não”.

“Soneto Futurista” – Glauco Mattoso

Os Vândalos de Outrora
              Com um número expressivo de obras que traduzem a repressão em várias dimensões de representação, a exposição “Resistir é Preciso” aparece em momento necessário em que manifestações tomam nossas atenções e inquietações. Parece, então, adequado um distanciamento para vislumbrar como artistas lidaram com a representação em regimes que, em alguns aspectos, nos assustam pela semelhança. Dividida em quatro partes a exposição idealizada pelo Instituto Vladimir Herzog traz a tona a resistência dos meios de comunicação que levou centenas de profissionais da área para a prisão, onde foram torturados e até assassinados (como o próprio Vlado), são elas: “Anos de Chumbo”, que abrange o período cujas obras parecem mais agônicas; “Imprensa contra a Ditadura”, onde vemos as revistas de resistência em circulação; “Nossos Direitos” cuja coleção é basicamente de uma única série, com autoria de vários artistas, inspirada na Declaração dos Direitos Humanos e, por último, “Não há de ser impune” que contém vídeos, fotografias e revistas sobre a Anistia Internacional. A acervo inclui Hélio Oiticica, Lygia Pape, Waldemar Cordeiro, Alex Flemming, Marcelo Nietsche, dentre outros “vândalos” da época. A exposição também conta com quadros didáticos sobre a trajetória dos partidos de esquerda desde o PCB de 1922, e linhas do tempo para ajudar aqueles não nascidos na época. Enfim, uma aula de história. Curiosa é também uma sessão que abre para o público a chance de representar, num mural, suas indignações com a repressão que tem, em alguns signos, um paralelo gritante com os antigos marginais.



Um Tempo Escuro

                Sempre foi difícil usar obras de arte como ferramenta ideal para se medir qualquer coisa além dela mesma e usá-la como índice ou ilustração de um certo estado de espírito de seu tempo é gesto que não se dá sem violência. Às vezes uma crítica de arte focada na leitura discursiva de uma obra sobre o mundo termina por ignorar sua intransitividade, uma outra crítica concentrada exclusivamente na poética (no sentido aristotélico do termo) de construção das obras peca por inevitavelmente retirá-las de contexto – como se obras não fossem feitas por pessoas e para pessoas, e essas pessoas não carregassem sob as pálpebras os vícios e as potências de sua própria cultura. O que significa dizer que fazer uma obra de arte no período da repressão significa se deparar com um impasse abissal em termos de tradução em linguagem. As obras dessa sessão se deparam com esse abismo na linguagem cuja dissolução da figuração é o primeiro sintoma.


Figura (1964) Ivan Serpa, óleo sobre tela, 134 X 203.




                  Com Figura de Ivan Serpa conseguimos ter uma noção da deformação no âmbito da percepção sensível frente à escuridão, ao medo. Sua pálida criatura se contorce e parece debater-se, tentando escapar de algo que já a consumiu por completo: a morte. Esse, e outras telas que compõem suas Figuras, são as últimas obras antes de Serpa mergulhar na abstração total, como se aqui houvesse um último filigrana reconhecível da exterminação completa da figuração que, já aqui, se anuncia. Elogio ao disfuncional? Não exatamente, mas solicitação de modernidade. Um artista bem que gostaria de representar gatos e paisagens, mas ele, como todos nós, não escolhe o tempo que nasce. Essa solicitação é o cerne da série Natureza Morta (1978) de Alex Flemming que ocupa a mesma sala.
 
 
Natureza-morta (1978) Alex Flemming,
 buril e fotogravura sobre papel, 39 X 26,3.

 

 
             Aqui temos a nítida impressão de um gênero consagrado pelas academias em seu caráter de contemplação e estudo de harmonia e forma, a Natureza Morta, deslocado para um fim político de denúncia. Esse conflito entre gênero e objeto gera, naquele que se aproxima das obras pelo reconhecimento do nome por antecipação, uma tentativa de achar harmonia onde só se vê terror. Tal tentativa se traduz em náusea, por ser tentativa sem lastro com o real: eis os infortúnios da tradição.

            Quem parece estar mais fora do peso deformador da tradição é Cildo Meirelles com suas Inserções em Circuitos Ideológicos (1975) que funciona com a inserção de um elemento dissonante imprevisto dentro da lógica da reprodutibilidade técnica dos itens de maior circulação do capital. Assim ele inseriu seu projeto em itens de consumo massivo como no projeto Coca-Cola que imprimi na garrafa como se faz, passo a passo, um molotov. Outro projeto, Quem Matou Vladimir Herzog?, que teve mais sucesso, talvez pela abrangência do potencial de circulação do dispositivo – afinal o que é mais passível de circulação na sociedade capitalista se não a própria moeda de troca dessa sociedade? “Eles vão se deparar com a pergunta”, parece dizer Meirelles, “talvez tentem afastar-se do mal estar, todavia, quando menos esperarem, lá vai estar ela novamente, inserida no seu cotidiano, mesmo que não se fale a respeito, como um andarilho que perturba o banquete no castelo das ilusões”. O projeto parece estar sendo retomado atualmente para lembrar que não estamos, apesar de esquecermos com frequência, tão distantes do passado, como se, após o fervor, o andarilho fosse convidado para se juntar à mesa e fosse tomado por uma contemplação entorpecida de mendigo farto, mas que, após a digestão, dá-se conta do poder de Calipso do festim.
 


Insersções em Circuitos Ideológicos – Projeto Quem Matou Vladimir Herzog (1975) Cildo Meireles.


Anônimo


 A língua que não lambe a bota






                   O segundo andar guarda um tesouro. Trata-se de paredes com as capas e mais capas de revistas de crítica ao poder que custam, à minha neófita geração e a mim mesmo, de acreditar que elas circulavam. Muitas, é verdade, circulavam clandestinamente. É sabido também que outras (como no caso d’O Pasquim) eram lidas e admiradas – pasmem! – pelos próprios milicos da censura (coisa que não deixou de evitar a dissolução da revista pelo serviço de extermínio). Pif Paf do Millôr, Opinião (que depois se transformaria em O Movimento), O Grilo, Pasquim, está tudo lá. São várias as de outros países da América Latina e França que também apontavam suas máquinas de escrever para cá e metralhavam o papel contra os dirigentes.

            A escolha de colocar Língua Apunhalada de Lygia Pape numa das paredes já sugere o que se passou com esses caras. Esses, talvez não poderiam prever que a censura permaneceria com a democracia, regida pelos ícones da liberdade de outrora.


 
 
O Iluminismo

            A terceira sala reúne, basicamente, uma única série. Baseada nos artigos dos Direitos Humanos, cada artista (e são muitos) tomaram um artigo para representar em uma tela. A maioria traduzia os artigos em imagens um tanto “burocráticas” – um tédio. São poucas as que conseguem contrapor o nomos da práxis, como José Guyer que representa o “Atigo XXlll – Todo ser humano tem direito a propriedade” com uma cena de Don João Vl e a família real atracando no porto. A cena leva uma inscrição que não vou reproduzir fielmente (não era permitido tirar fotos, uma maçada) mas que diz, de maneira pouco sucinta: “a família real chegou ao Brasil, e colocou para fora aqueles cujo domicílio lhes interessava a estadia”. Enfim uma homenagem à lucidez.

           

O Progresso

            A última sala tem como tema o processo de abertura. Com vídeos de entrevistas e gravações de discursos, a sala parece conter um movimento que nos impele para o futuro. Fotografias e revistas trazem o momento do suplício pela lei de Anistia que parece configurar, nos olhos dos manifestantes, o último filigrana de esperança. O futuro tem por objetivo o esquecimento, deve se livrar do passado e de seus grilhões para galopar ao “desenvolvimento”. Andando pelos corredores cinzentos dessa sala que parecemos ouvir uma música que vem de não se sabe onde mas que, ao nos aproximarmos do som, temos uma visão daquilo que é como uma síntese da sala (e por que não da exposição?) diante de nossas retinas. Trata-se de um pequeno espaço dentro de uma escura saleta que toca um réquiem e, nas paredes, projetam nomes de pessoas que atravessam a sala para cair num amontoado de outros nomes  que a precederam.

 

               Os nomes, de alguns assassinados durante a repressão, são amontoados, escombros sobre escombros que, sem cessar, é arremessado em nossos e que, como o Anjo de Benjamin, é incapaz de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços com suas asas, pois, essas, são impelidas pela tempestade do progresso.

 



Serviço:
“Resistir É Preciso”
até 06 de Janeiro de 2014                                                                                                                                                                                                          Ingresso: Gratuito
Indicação: Livre
CCBB São Paulo 
Aberto de quarta a segunda, das 9h às 21h
Rua Álvares Penteado, 112 - Sé, São Paulo
(11) 3113-3651 e 3113.3652

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