“George Orwell diz que a imagem do futuro
é a bota sobre um rosto, eternamente,
e a nítida impressão que a gente sente
é que vivemos já num tempo escuro.
O Burgess, por sua vez, também foi duro
quando pegou seu jovem delinqüente
e o converteu num ser subserviente
que só lambia sola, robô puro.
O Glauco aqui, que vive do passado,
saudoso duma infância de opressão
(só fui pelos moleques abusado),
É o mesmo Glauco agora, e lambe o chão
pisado pelo mesmo tipo sado;
só que antes enxergava, e agora não”.
é a bota sobre um rosto, eternamente,
e a nítida impressão que a gente sente
é que vivemos já num tempo escuro.
O Burgess, por sua vez, também foi duro
quando pegou seu jovem delinqüente
e o converteu num ser subserviente
que só lambia sola, robô puro.
O Glauco aqui, que vive do passado,
saudoso duma infância de opressão
(só fui pelos moleques abusado),
É o mesmo Glauco agora, e lambe o chão
pisado pelo mesmo tipo sado;
só que antes enxergava, e agora não”.
“Soneto Futurista” – Glauco Mattoso
Os Vândalos de Outrora
Com um número expressivo de obras que traduzem a
repressão em várias dimensões de representação, a exposição “Resistir é Preciso”
aparece em momento necessário em que manifestações tomam nossas atenções e
inquietações. Parece, então, adequado um distanciamento para vislumbrar como
artistas lidaram com a representação em regimes que, em alguns aspectos, nos
assustam pela semelhança. Dividida em quatro partes a exposição idealizada pelo
Instituto Vladimir Herzog traz a tona a resistência dos meios de comunicação
que levou centenas de profissionais da área para a prisão, onde foram
torturados e até assassinados (como o próprio Vlado), são elas: “Anos de
Chumbo”, que abrange o período cujas obras parecem mais agônicas; “Imprensa
contra a Ditadura”, onde vemos as revistas de resistência em circulação;
“Nossos Direitos” cuja coleção é basicamente de uma única série, com autoria de
vários artistas, inspirada na Declaração dos Direitos Humanos e, por último, “Não
há de ser impune” que contém vídeos, fotografias e revistas sobre a Anistia
Internacional. A acervo inclui Hélio Oiticica, Lygia Pape, Waldemar Cordeiro,
Alex Flemming, Marcelo Nietsche, dentre outros “vândalos” da época. A exposição
também conta com quadros didáticos sobre a trajetória dos partidos de esquerda
desde o PCB de 1922, e linhas do tempo para ajudar aqueles não nascidos na
época. Enfim, uma aula de história. Curiosa é também uma sessão que abre para o
público a chance de representar, num mural, suas indignações com a repressão
que tem, em alguns signos, um paralelo gritante com os antigos marginais.
Um Tempo Escuro
Sempre foi difícil usar
obras de arte como ferramenta
ideal para se medir qualquer coisa além dela mesma e usá-la como índice ou
ilustração de um certo estado de espírito de seu tempo é gesto que não se dá
sem violência. Às vezes uma crítica de arte focada na leitura discursiva de uma
obra sobre o mundo termina por ignorar sua intransitividade, uma outra crítica
concentrada exclusivamente na poética (no sentido aristotélico do termo) de
construção das obras peca por inevitavelmente retirá-las de contexto – como se
obras não fossem feitas por pessoas e para pessoas, e essas pessoas não
carregassem sob as pálpebras os vícios e as potências de sua própria cultura. O
que significa dizer que fazer uma obra de arte no período da repressão
significa se deparar com um impasse abissal em termos de tradução em linguagem.
As obras dessa sessão se deparam com esse abismo na linguagem cuja dissolução
da figuração é o primeiro sintoma.
Figura
(1964) Ivan Serpa, óleo sobre tela, 134 X 203.
Com Figura de Ivan Serpa conseguimos ter uma
noção da deformação no âmbito da percepção sensível frente à escuridão, ao
medo. Sua pálida criatura se contorce e parece debater-se, tentando escapar de
algo que já a consumiu por completo: a morte. Esse, e outras telas que compõem
suas Figuras, são as últimas obras antes de Serpa mergulhar na abstração total,
como se aqui houvesse um último filigrana reconhecível da exterminação completa
da figuração que, já aqui, se anuncia. Elogio ao disfuncional? Não exatamente,
mas solicitação de modernidade. Um
artista bem que gostaria de representar gatos e paisagens, mas ele, como todos
nós, não escolhe o tempo que nasce. Essa solicitação é o cerne da série Natureza Morta (1978) de Alex Flemming
que ocupa a mesma sala.
buril e fotogravura sobre papel, 39 X 26,3.
Aqui temos a
nítida impressão de um gênero consagrado pelas academias em seu caráter de
contemplação e estudo de harmonia e forma, a Natureza Morta, deslocado para um
fim político de denúncia. Esse conflito entre gênero e objeto gera, naquele que
se aproxima das obras pelo reconhecimento do nome por antecipação, uma
tentativa de achar harmonia onde só se vê terror. Tal tentativa se traduz em
náusea, por ser tentativa sem lastro com o real: eis os infortúnios da
tradição.
Quem parece estar mais fora do peso
deformador da tradição é Cildo Meirelles com suas Inserções em Circuitos Ideológicos (1975) que funciona com a
inserção de um elemento dissonante imprevisto dentro da lógica da
reprodutibilidade técnica dos itens de maior circulação do capital. Assim ele
inseriu seu projeto em itens de consumo massivo como no projeto Coca-Cola que imprimi na garrafa como se faz, passo a
passo, um molotov. Outro projeto, Quem
Matou Vladimir Herzog?, que teve mais sucesso, talvez pela abrangência do
potencial de circulação do dispositivo – afinal o que é mais passível de
circulação na sociedade capitalista se não a própria moeda de troca dessa
sociedade? “Eles vão se deparar com a pergunta”, parece dizer Meirelles,
“talvez tentem afastar-se do mal estar, todavia, quando menos esperarem, lá vai
estar ela novamente, inserida no seu cotidiano, mesmo que não se fale a
respeito, como um andarilho que perturba o banquete no castelo das ilusões”. O
projeto parece estar sendo retomado atualmente para lembrar que não estamos,
apesar de esquecermos com frequência, tão distantes do passado, como se, após o
fervor, o andarilho fosse convidado para se juntar à mesa e fosse tomado por
uma contemplação entorpecida de mendigo farto, mas que, após a digestão, dá-se
conta do poder de Calipso do festim.
Insersções
em Circuitos Ideológicos – Projeto Quem Matou Vladimir Herzog (1975) Cildo Meireles.
Anônimo
A língua que não lambe a bota
O segundo
andar guarda um tesouro. Trata-se de paredes com as capas e mais capas de
revistas de crítica ao poder que custam, à minha neófita geração e a mim mesmo,
de acreditar que elas circulavam. Muitas, é verdade, circulavam
clandestinamente. É sabido também que outras (como no caso d’O Pasquim) eram
lidas e admiradas – pasmem! – pelos próprios milicos da censura (coisa que não
deixou de evitar a dissolução da revista pelo serviço de extermínio). Pif Paf
do Millôr, Opinião (que depois se transformaria em O Movimento), O Grilo,
Pasquim, está tudo lá. São várias as de outros países da América Latina e
França que também apontavam suas máquinas de escrever para cá e metralhavam o
papel contra os dirigentes.
A escolha de colocar Língua Apunhalada de Lygia Pape numa das
paredes já sugere o que se passou com esses caras. Esses, talvez não poderiam
prever que a censura permaneceria com a democracia, regida pelos ícones da
liberdade de outrora.
O Iluminismo
A terceira sala reúne, basicamente,
uma única série. Baseada nos artigos dos Direitos Humanos, cada artista (e são
muitos) tomaram um artigo para representar em uma tela. A maioria traduzia os
artigos em imagens um tanto “burocráticas” – um tédio. São poucas as que
conseguem contrapor o nomos da práxis, como José Guyer que representa o
“Atigo XXlll – Todo ser humano tem direito a propriedade” com uma cena de Don
João Vl e a família real atracando no porto. A cena leva uma inscrição que não
vou reproduzir fielmente (não era permitido tirar fotos, uma maçada) mas que
diz, de maneira pouco sucinta: “a família real chegou ao Brasil, e colocou para
fora aqueles cujo domicílio lhes interessava a estadia”. Enfim uma homenagem à
lucidez.
O Progresso
A última sala tem como tema o
processo de abertura. Com vídeos de entrevistas e gravações de discursos, a
sala parece conter um movimento que nos impele para o futuro. Fotografias e
revistas trazem o momento do suplício pela lei de Anistia que parece
configurar, nos olhos dos manifestantes, o último filigrana de esperança. O
futuro tem por objetivo o esquecimento, deve se livrar do passado e de seus
grilhões para galopar ao “desenvolvimento”. Andando pelos corredores cinzentos
dessa sala que parecemos ouvir uma música que vem de não se sabe onde mas que,
ao nos aproximarmos do som, temos uma visão daquilo que é como uma síntese da
sala (e por que não da exposição?) diante de nossas retinas. Trata-se de um
pequeno espaço dentro de uma escura saleta que toca um réquiem e, nas paredes,
projetam nomes de pessoas que atravessam a sala para cair num amontoado de
outros nomes que a precederam.
Os nomes, de
alguns assassinados durante a repressão, são amontoados, escombros sobre
escombros que, sem cessar, é arremessado em nossos e que, como o Anjo de
Benjamin, é incapaz de demorar-se, de despertar os mortos e juntar os destroços
com suas asas, pois, essas, são impelidas pela tempestade do progresso.
Serviço:
“Resistir É Preciso”
“Resistir É Preciso”
até 06 de Janeiro de 2014
Ingresso: Gratuito
Indicação:
Livre
CCBB São Paulo
Aberto de quarta a segunda, das 9h às 21h
Rua Álvares Penteado, 112 - Sé, São Paulo
(11) 3113-3651 e 3113.3652
CCBB São Paulo
Aberto de quarta a segunda, das 9h às 21h
Rua Álvares Penteado, 112 - Sé, São Paulo
(11) 3113-3651 e 3113.3652
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